Sunday, December 16, 2007

Mark Murphy, transcendendo o sublime

Mark Murphy, transcendendo o sublime

Aos 75 anos, cantando cada vez melhor, o cult-singer lança um CD extraordinário
Arnaldo DeSouteiro

Los Angeles - Os Estados Unidos presentearam o mundo com os maiores cantores (e cantoras também, claro) da história da música “popular” e do jazz. Listar todos não vem ao caso. Limitar-me-ei a citar os três titãs: o saudoso Frank Sinatra, o intrépido Tony Bennett, ainda brilhando aos 81 anos, e o incomparável Mark Murphy, cantando cada vez melhor aos 75. Editado pelo selo Verve, “Love is what stays”, segundo fruto da colaboração de MM com o trompetista alemão Till Bronner – iniciada em 2005 com o álbum “Once to every heart” – é prova cabal de tal proeza.

Notáveis estilistas

Cresci ouvindo Sinatra, graças às coleções de meu pai (os discos da fase áurea na Columbia mais os 10 polegadas históricos “Swing easy!” e “Songs for young lovers” que eram os meus prediletos) e de minha mãe, fanzoca das big-bands, e de quem até hoje guardo preciosos 78 rotações do Sinatra ainda crooner nas orquestras de Harry James e Tommy Dorsey. A admiração por Bennett começou por volta dos meus 10 anos de idade, através de amigos como Luiz Bonfá e Richard Templar, que me aplicaram “The movie song album”. Mas só descobri Mark Murphy bem mais tarde, através de “Brazil song” (gravado em 83, lançado em 84) adquirido em uma loja em Hollywood. O impacto foi violento e saí à caça dos outros LPs. Todos importados. Descobri que ele já tinha gravado duas dezenas de discos, mas nenhum deles havia sido editado no Brasil.

Curiosamente, poucos meses depois ficamos amigos quando MM foi ao Rio de Janeiro pela primeira vez, como atração musical de um festival gastronômico de San Francisco promovido pelo Hotel Intercontinental. Apesar do contexto bizarro – o falatório era intenso e ninguém ali parecia interessado no show –, Mark, acompanhado pelo trio de Osmar Milito, arrasou. Ao vivo impressionava ainda mais do que nas gravações. Na noite seguinte, ofereci à Murphy um jantar em minha casa na Rua Paissandu e desde então não perdemos contato. O privilégio de assistir seus shows repetiu-se várias vezes – uma delas em São Paulo (acompanhei a temporada inteira de duas semanas no “150 Nightclub” do Maksoud Plaza em 88) e inúmeras outras na Europa e nos EUA, inclusive durante a convenção da IAJE em 1992, em Miami, quando Mark também me deu a honra de assistir uma das minhas palestras. Visitei-o com Ronald Iskin quando ainda morava em San Francisco na Avenida Van Ness (atualmente reside na cidade de Shohola, na Pennsylvania) e depois tive a honra de hospedá-lo na Barra da Tijuca e em Petrópolis.
Obra de arte

Inteiramente gravado em Berlin, masterizado em Hollywood pelo medalhão Bernie Grundman, perfeito sob todos os aspectos, “Love is what stays” começa ótimo e vai crescendo a cada faixa, tornando-se mais apaixonante a cada tema, a cada compasso. É o segundo disco de Mark Murphy lançado nos EUA pelo cobiçado selo Verve, no qual conseguiu ingressar, ironicamente, através de um contrato assinado com a Universal alemã em 2005. O CD aparece com várias pré-indicações na “Entry List” do Grammy e, se passar para a fase final, tem boas chances de levar o prêmio em 2008, na categoria de “best vocal jazz album”, à qual MM já foi indicado algumas vezes, jamais faturando a estatueta.

“Stolen moments”, de Oliver Nelson (carro-chefe do antológico “The blues and the abstract truth” safra 1961), sempre foi um dos temas preferidos de Murphy, que o letrou, gravou e selecionou como faixa-título de seu disco para a Muse Records em 1978. Aqui reaparece como peça-central, em três momentos – faixa de abertura e duas reprises, além de gerador do primeiro remix. A escolha inteligente permite a Mark uma rápida demonstração de seu pessoal estilo de scat-singing (sim, é possível estabelecer um padrão pessoal dentro do manjado maneirismo) que Kurt Elling insiste em imitar.


A abertura do CD funciona tal como uma abertura de ópera. O primeiro ato somente se inicia quando as cordas surgem pela primeira vez, na introdução de “Angel eyes”, baladaça de Matt Dennis & Earl Brent originalmente gravada por MM no LP “Rah!” em 61. E aí vem uma das inúmeras surpresas do disco. A introdução lenta é alarme falso, com o arranjo, assinado pelo contrabaixista Christian von Kaphengst, desviando para um suingado andamento médio, desenvolvido sobre uma célula criada em torno da linha executada em uníssono por contrabaixo e clarone, como se fosse um riff. “Provocação” suficiente para incitar Mark a uma aula de fraseado. Os solos ficam a cargo do guitarrista Johan Leijonhufvud (a la Coryell) e do pianista Frank Chastenier. As surpresas ficam por conta da interpretação de Mark, que vai desmembrando cada palavra da letra, enunciando cada sílaba de uma forma inesperada, culminando com um “disappear” fulminante que se esvai como fumaça no encerramento da performance.

Na terceira faixa, “My foolish heart” (Victor Young & Ned Washington, com Lee Konitz no sax-alto), entra em cena uma personagem de crucial importância para o êxito deste projeto: a arranjadora e maestrina Nan Schwartz, co-produtora do CD, e que já havia chamado minha atenção pela adaptação de “Siciliano” (Bach) no disco “Breakthrough“ (86), de Eddie Daniels, não por coincidência também o melhor álbum em toda a carreira do clarinetista. Regendo a Deutsches Symphonie Orchester Berlin, Nan revela a forte (positiva) influência de Claus Ogerman, confirmando sua condição como o que aqui nos EUA se chama “best kept secret”, ou seja, um dos segredos mais bem guardados da cena musical. Combinação fatal de charme, sutileza e elegância a toda prova. Tal qual Mark Murphy.

Aulas de canto

Mark dá um banho de loja na canção country “So doggone lonesome”, de Johnny Cash (1955), pontuada por duas guitarras em intervenções minimalistas e pelo trompete de Bronner, também o arranjador que extirpou a poeira da cafonice e o ranço de sentimentalismo. Igualmente surpreendente, “What if”, hit do grupo de rock inglês Coldplay no disco “X&Y” (2005), ressurge reinventado, discretamente ornamentado por cordas, flautas, clarinete e a guitarra de Chuck Loeb, mais os flocos de neve adicionados pelo Fender Rhodes de Don Grusin.

A faceta de amante & praticante da poesia beat está representada por “The interview” e “Blue cell phone” (esta última em duo com Chastenier ao piano), ambas assinadas por Murphy, também o autor (em parceria com Bronner) da faixa-título “Love is what stays”, outro momento fascinante, pontuado por trompas celestiais.

Quando o ouvinte já se encontra inebriado, praticamente hipnotizado pela densidade & intensidade da beleza sonora ofertada, MM desfere mais três facadas mortais via “Too late now” (fulminante introdução a capela para a suntuosa peça de Burton Lane & Alan Jay Lerner), “Did I ever really live” (Albert Hague & Allan Sherman) e “Once upon a summertime”, a versão em inglês de Johnny Mercer para a primeira canção de Michel Legrand, “La valse des lilas”, composta em 1954 e aqui redimensionada pela orquestração de Nan Schwartz, que cita “Retrato em branco e preto” no movimento final das flautas. Três gravações insuperáveis. Três belíssimas baladas tornadas ainda mais comoventes por Murphy, que acaricia cada nota e lapida cada som, mergulhando fundo na essência de cada canção, eternizando-as à sua maneira.

Recriações e reinvenções

Além da edição em CD com treze faixas na Europa e nos EUA (e quatorze na japonesa por conta da bonus-track “Shirley Horn”, preciosa homenagem de 3m17s), o disco encontra-se disponível em vinil, com dez faixas – ficaram de fora “The interview”, e as duas vinhetas de “Stolen moments”. Também já foram lançados dois singles prensados em vinil de 12 polegadas e 45rpm (o formato preferido pelos DJs), destinados ao mercado de “dancefloor jazz” no qual Mark é cultuado desde a febre do acid-jazz em fins dos anos 80.



O primeiro EP destaca, no lado A, o tratamento dançante conferido a “Stolen moments” pelo produtor italiano Nicola Conte, que prefere chamar sua reconstrução acústica de “rework” ao invés de remix, pois extrai da gravação original apenas a voz de MM, adicionando novo arranjo instrumental executado pelos músicos Pietro Lussu (piano), Fabrizio Bosso (trompete), Daniele Scannapieco (sax tenor), Lorenzo Tucci (bateria) e Pietro Ciancaglini (baixo). No lado B, as três versões de “Stolen” que constam do CD. O segundo EP traz alucinado remix eletrônico (8m03s) de Henrik Schwarz, techno-sinfônico, para “Love is what stays”, cujo take original ocupa a face B.

Instigante musicalmente, contemporâneo na essência, atemporal na instrumentação & poder de fascinação, “Love is what stays” enfeitiça e cativa. Transcende o sublime. Atiça e aquieta os sentidos. Seduz e acaricia. Sem firulas gratuitas, sem didatismo, fornece sucessivas lições de fraseado, respiração e interpretação. Enfim, uma aula de canto. Merece figurar não apenas como um dos melhores lançamentos de 2007, mas também entrar para o rol das dez principais jóias discográficas de Mark Murphy ao lado de “September ballads”, “Beauty and the beast”, “Bop for Keroauc”, “Rah!”, “That’s how I love the blues”, “Song for the geese”, “Another vision”, “The dream” e “Kerouac, then and now”.

Legendas:
“Love is what stays”, o melhor disco vocal de 2007, reúne algumas das mais lindas baladas de todos os tempos
Aos 75 anos, em grande forma vocal, Mark Murphy supera-se mais uma vez
Lançado em vinil, o remix de Nicola Conte reconstrói a faixa “Stolen moments” para as pistas de dança

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