Thursday, May 24, 2007

Menescal atemporal




Jóias do Menescal atemporal
“Dois discos antológicos são relançados em CD”
Arnaldo DeSouteiro


Artigo escrito por Arnaldo DeSouteiro em 13 de Fevereiro de 2004 e publicado originalmente no jornal "Tribuna da Imprensa"

Se a atual produção musical de Roberto Menescal provoca reações contraditórias, por motivos que não cabe aqui discutir, sua atuação nos anos 60 é uma unanimidade. Compositor profícuo na fase áurea da bossa nova, autor de vários clássicos incessantemente regravados, só não alcançou a mesma projeção internacional de Tom Jobim ou Luiz Bonfá por questões de logística. No comando de seu sexteto, registrou jóias preciosas como os dois discos (“A bossa nova de Roberto Menescal e seu conjunto” e “Surfborad”) agora relançados pela primeira vez em CD, pela Universal - ambos há cerca de quarenta anos fora de catálogo até mesmo no Japão, disputados a peso de ouro por colecionadores.

Segundo alguns historiadores, o grupo de Menescal era, na verdade, o de Eumir Deodato, que atuava na TV Rio em programas de calouros, com Celso Brando ao violão. Menescal teria proposto assumir a liderança em troca da chance de mais shows e várias gravações. Deu certo e, sob a sua direção, o conjunto logo despontou como um dos melhores na história da bossa. Fugindo do lugar-comum dos trios que proliferavam no Beco, destacava-se como um sexteto de alto teor criativo, com piano (Deodato), baixo (Sergio Barroso), bateria (João Palma), flauta (Henri Ackselrud), vibrafone (Ugo Marotta) e, claro, Menescal revezando no violão e na guitarra. Não encontrava paralelo nem mesmo em outras formações maiores, pois todas, inclusive as lideradas por Meirelles (Copa 5) e Sergio Mendes (Bossa Rio), tinham ênfase nos instrumentos de sopros. Resumindo: não tinha competidores.

O disco de estréia na Elenco, terceiro LP lançado pelo selo que o produtor Aloysio de Oliveira dirigiu entre 1963 e 68, intitulava-se simplesmente “A bossa nova de Roberto Menescal e seu conjunto”. Tem “apenas” 27 minutos e 41 segundos de duração, mas quem reclamar não merecia ter nascido. Afinal, trata-se de um discaço, com repertório impecável em arranjos magistrais, esteticamente influenciados por Mancini (via Eumir), Brubeck e George Shearing. Tudo com uma saudável sensação de espontaneidade, apesar dos arranjos bem estruturados. “Gravávamos todos juntos, não tinha emenda. Se alguém errava, era preciso parar e regravar a faixa toda”, enfatiza João Palma, o baterista mais sutil da história da música brasileira, que depois partiria, assim como Deodato, para brilhante carreira nos EUA, onde trabalhou com Sergio Mendes, Tom Jobim, Frank Sinatra, Walter Wanderley, Astrud Gilberto, Stanley Turrentine, Michael Franks e muitos outros.

Nem todos do grupo tomaram o mesmo rumo. Sergio Barroso, o baixista-modelo da bossa, bem mais moço que os colegas de instrumento Manuel Gusmão, Gabriel Bezerra e Luiz Marinho, preferiu ficar no Brasil. Excursionou pela Europa no final dos anos 60 com Sylvia Telles e Edu Lobo, mas atravessou os anos 70 como um dos músicos mais requisitados para gravações no Rio de Janeiro, inclusive no “Som brasileiro de Sarah Vaughan”. Após um período dedicado prioritariamente ao estúdio de cinema herdado do pai, voltou a música e hoje encontra-se em plena atividade no que restou da noite carioca.

Ugo Marotta e Henri Ackselrud acabaram se afastando da música por motivos diferentes. Ugo, cujo primeiro vibrafone ele mesmo construiu, casou com a irmã de Barroso, e foi cuidar de uma revendedora de pneus, retornando à cena artística ocasionalmente, em discos como o excelente e absurdamente esquecido encontro com Mauricio Einhorn, exclusivamente dedicado a canções vencedoras do Oscar, lançado pela antiga Philips em 75, na época em que Menescal era o diretor da companhia. Vinte anos depois, gravou um CD para o selo Imagem, mas trocando o instrumento original pelo “vibrafone sintético” dos teclados eletrônicos. Enquanto isso, Henri, após desligar-se do conjunto, optou pela faculdade de economia, engajou-se nos movimentos estudantis contra a ditadura militar, e ficou dez mesos preso na Vila Militar em 1970. Quando saiu, entrou na clandestinidade, fugiu para o Chile e acabou em Paris, obtendo um doutorado em Economia.

Henri tinha 15 anos ao gravar “A bossa nova de Roberto Menescal e seu conjunto”, em fins de 1963, no estúdio da Riosom, no centro do Rio. Nos shows à noite, proibido de atuar pelo juizado de menores, era substituído pelo veterano Copinha. Os outros membros tinham entre 18 e 26 anos, mas a maturidade musical demonstrada é espantosa. No livro “Chega de Saudade”, Ruy Castro afirma: “Quando você pensava estar comprando Menescal, na verdade estava comprando Deodato – Menescal apenas servia prazeirosamente como front-man”. Será? Bem, caso as informações contidas no livreto desta reedição em CD estejam corretas, Eumir assinou os arranjos somente de três faixas: “Desafinado” (usando “O reloginho do vovô”, de Garoto, como introdução), “O amor que acabou” (tema de Chico Feitosa & Lula Freire) e “Baiãozinho”, dele próprio. Os demais arranjos seriam de Ugo e Menescal, sem maiores especificações.

Dúvidas de copyright à parte, o conteúdo musical é irretocável. A afiada parceria do capixaba Roberto Batalha Menescal (nascido em 1937) com o carioca Ronaldo Fernando Esquerdo Boscoli (de 1929) já estava consagrada desde o disco “O Barquinho”, de Maysa (62). E acabou avalizada definitivamente por Lucio Alves no “Balançamba”, songbook de Menescal & Boscoli gravado para a Elenco no inicio de 63, com orquestrações de Carlos Monteiro de Souza e o próprio grupo de Menescal atuando na base. Naquela época, o novato João Palma, rei das vassourinhas, e o lendário Juquinha Stockler revezavam na bateria. Ou, como se ouve na faixa “Nós e o mar”, dividiam a mesma bateria. Palma estabelece a pulsação contagiante usando as vassouras no contratempo, enquanto Juquinha, de pé ao seu lado, ataca com as baquetas de feltro nos pratos.

Quatro músicas gravadas por Lúcio foram recriadas: “Rio”, “Nós e o mar”, “Dan-cha-cha-cha” (Juquinha no bongô) e a faixa-título do disco do cantor, com a grafia alterada para “Balansamba”, abrigando impagável intervenção vocal do chefão Aloysio. “Batida Diferente”, de Durval Ferreira & Mauricio Einhorn, ganhou um molho ainda mais inusitado, com uma sucessão de ótimos solos curtinhos de Menescal (no violão), Eumir e Ugo. Amostras de um tempo em que os músicos brasileiros conseguiam, em faixas que raramente ultrapassavam dois minutos, expressar o que muitos hoje não conseguem em vinte minutos de improviso! Completam o repertório: “Você e eu” (Lyra & Vinicius, com Menescal na guitarra semi-acústica e Palma estraçalhando nas baquetas), e as Jobinianas “Samba torto”, “Garota de Ipanema” e “Só danço samba”, outro show particular de Palma.

Ainda com a formação original, o grupo fez o segundo disco na Elenco (“A nova bossa nova de Roberto Menescal”, reeditado em CD pela antiga Polygram nos anos 80, mas há muito esgotado), além de dividir “Samba session” com Sylvia Telles & Lucio Alves. Com a saída de Eumir (“me recusei a acompanhar um calouro que queria cantar “Bigorilho” e acabei despedido”, conta), os conflitos internos explodiram. Oscar Castro-Neves, originalmente um violonista de mão cheia, encarou o piano praticado desde que substituíra o irmão Mário no quarteto que tocou no célebre concerto de bossa no Carnegie Hall, em 62. Outro mano, Iko Castro-Neves, entrou no lugar de Sergio Barroso, e Alpheo Barroso Neto assumiu a bateria, porém sem igualar a sofisticação de Palma. Permaneceram Ugo e Henri, que evoluíram muitíssimo como solistas.

O resultado pode ser contemplado no esplêndido “Surfborad” (30m01s), lançado em 1966 inaugurando uma série da Elenco feita para exportação. Os arranjos, agora divididos entre Menescal, Ugo, Iko e Oscar, passaram a incorporar pandeiro (tocado pelo ritmista Armando Marçal) e uma seção de cordas (recrutada pelo violoncelista Peter Daulsberg) na maioria das faixas. Há releituras sensacionais de temas estrangeiros – todos devidamente bossanoveados – como “My heart stood still”, “The hot canary” e até o standard jazzístico “Perdido”, hit da orquestra de Duke Ellington, nítida inspiração da notável “O Grito” (Menescal), com eletrizante passagem das cordas em pizzicato. As baladas “Tetê” (já deflorada por Lucio Alves), “Bonita” (Tom) e “Razão de viver” (de Eumir, e uma prova de que Menescal não guardou ressentimentos) são conduzidas de forma inebriante, Oscar consegue o milagre de reler “Preciso aprender a ser só” (dos irmãos Valle) sem sentimentalismos, Menesca balança a la Barney Kessel em “Se o carro parar” e...basta! Vá correndo comprar os CDs, antes que saiam de catálogo.

Legendas:
Ilustração 1 (referente a capa do CD “A bossa nova de Roberto Menescal e seu conjunto”):
“Memorável disco de estréia, há quarenta anos fora de catálogo”

Ilustração 2 (referente a capa do CD “Surfboard”):
“O canto do cisne de um dos melhores grupos da bossa nova”

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